terça-feira, 4 de agosto de 2015

A Lava Jato vai limpar a nossa matriz energética?


Operação da PF expôs o elo entre energia insustentável e corrupção no Brasil; um efeito colateral poderá ser um impulso às renováveis. O comentário é de Ricardo Baitelo e Carlos Rittl em artigo publicado por Blog do Planeta, 30-07-2015.

Eis o artigo.

Quando o governo federal anunciou a decisão de construir duas mega-hidrelétricas no rio Madeira, mesmo após um parecer contrário do Ibama, ambientalistas e técnicos do setor chiaram. As usinas eram obviamente problemáticas do ponto de vista ambiental: previa-se que causariam alagamentos, problemas à pesca e pressão sobre a floresta e os serviços públicos em Porto Velho (tudo isso está acontecendo hoje). O governo foi adiante: atropelou o Ibama, grudou nos ambientalistas o rótulo de inimigos do Brasil e licenciou Santo Antônioe Jirau.

Começava ali um roteiro que seria seguido depois em Belo Monte e agora no complexo deusinas do Tapajós: atropelos a salvaguardas socioambientais e fartos subsídios a empreendimentos caros, de alto risco e baixa viabilidade econômica. São investimentos que aumentam a fragilidade do sistema elétrico brasileiro ao colocar a geração a milhares de quilômetros dos centros de consumo e, como mostraram estudos recentes da Secretaria de Assuntos Estratégicos da própria Presidência, ainda nos deixam em risco de desabastecimento por causa das mudanças do clima. A ministra de Minas e Energia responsável por implementar esse modelo, na administração Lula, atendia pelo nome deDilma Vana Rousseff.

A opção por hidrelétricas faraônicas fazia ainda menos sentido quando se olhava o que estava acontecendo no panorama energético lá fora. A energia solar entrava numa espiral descendente de preços, com o avanço de uma revolução chamada geração distribuída: cada família poderia produzir parte da eletricidade que consome ao instalar painéis solares em casa – energia segura e sustentável. Durante anos o governo federal torceu o nariz para a energia solar, alegando que essa fonte era cara demais. Só não explicava por que subsidiar solar não podia, mas tudo bem empatar R$ 30 bilhões para barrar o rio Xingu.

Uma das maiores razões para essa fixação em grandes obras começou a ser escancarada pela Polícia Federal e o Ministério Público: corrupção. A Operação Lava Jato, que já havia levantado indícios fortes de pagamento de propinas em Belo Monte, começou nesta semana a vasculhar mais a fundo o setor elétrico. Na última terça-feira, foi preso o diretor licenciado da Eletronuclear. A “holding” Eletrobras está agora na mira dos investigadores.

Há muito tempo se especula sobre o elo entre energia insustentável e corrupção: partidos políticos fatiam entre si os cargos-chave no setor. Os operadores de cada partido elegem as obras prioritárias e distribuem sua execução entre as empreiteiras do “clube”. Estas superfaturam os preços e, em troca, irrigam o caixa dos partidos e o bolso pessoal dos operadores partidários nos órgãos públicos. Como requinte de crueldade, ainda recebem crédito subsidiado do BNDES para isso, numa operação cujas dimensões o governo relutou em revelar. Quanto maior a obra, quanto mais pedra, cimento e terra escavada, mais gorda é a propina. A conta sobra para a população, que paga três vezes: pelo sobrepreço, pelo subsídio e pelo passivo ambiental.
O conluio entre agentes públicos e empreiteiras era algo de que apenas se suspeitava, até aLava Jato puxar o fio da meada de outra produtora de energia suja e intensiva em capital – a Petrobras – e botar na cadeia os presidentes das maiores construtoras do país. O mergulho ora iniciado no setor elétrico tem tudo para não deixar tijolo sobre tijolo.

Um efeito colateral das investigações poderá ser um impulso às energias renováveis que operem de forma mais descentralizada. Com a ligação entre construtoras e agentes públicos exposta, o governo pode se sentir inibido em seguir tocando a mesma música. É uma oportunidade para uma ação mais séria em geração solar distribuída (contam-se em poucas centenas as residências no Brasil que têm painéis solares e trocam energia com a rede).

O governo dá sinais de que pressentiu o golpe. O próprio discurso de Dilma sobre renováveis mudou: em 2012, ela chamava a energia solar de “fantasia”; no mês passado, adotou uma meta de expansão de eletricidade renovável para 20% da matriz em 2030. Mesmo que a meta não seja nada ambiciosa - poderíamos chegar a pelo menos 40% - o fato de a presidente falar hoje em investir em energia solar é, sim, novidade.

No mês que vem, o Ministério de Minas e Energia realiza um leilão de energia solar fotovoltaica. Um segundo está marcado para novembro, e só o ritmo atual de contratação já superaria a meta pífia de 3,5 gigawatts instalados projetada pelo governo para 2023. Alguns Estados já começam a rever sua política de tributação para energia solar.


Nunca se deve duvidar da capacidade do sistema político brasileiro de mudar para manter o status quo. Bem pode ser que após a Lava Jato a corrupção encontre outros caminhos para continuar poluindo, desmatando e excluindo. Mas nunca o caldo de cultura no país esteve tão favorável a outras fontes de energia, renováveis e limpas, em todos os sentidos – e em novas formas de vendê-las e distribuí-las.

sábado, 1 de agosto de 2015

A longa marcha dos neoliberais para governar o mundo


Com a fundação da Mont Pélerin Society (MPS) em 1947, teve início a longa marcha que levou o neoliberalismo a conquistar uma hegemonia totalitária sobre a economia e a política. Com as dramáticas consequências que ainda hoje experimentamos.

A opinião é do sociólogo italiano Luciano Gallino, professor emérito da Universidade de Turim, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 27-07-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Quando eu abro as janelas de manhã, nestes dias, o olhar cai inevitavelmente no Mont Pélerin, para além do lago. É uma montanha suíça a poucos quilômetros de Montreux, conhecida desde os anos 1920 pelos bons hotéis e pelo clima suave.
É também o lugar a partir do qual teve início, com a fundação da Mont Pélerin Society (MPS) em 1947, a longa marcha que levou o neoliberalismo a conquistar uma hegemonia totalitária sobre a economia e a política da Europa inteira. Com as dramáticas consequências que ainda hoje experimentamos.
Gramsci acharia muito interessante a estratégia adotada pela MPS para conquistar a hegemonia, entendida no seu pensamento como um poder exercido com o consentimento daqueles que se submeteram a ele. Em vez de constituir mais uma fundação ou um think tankespecializado em promover este ou aquele ramo da economia, a MPS optou por construir em grande escala um "intelectual coletivo".
Em 1947, quando Friedrich Hayek reuniu um pequeno grupo de economistas e outros intelectuais (incluindo Maurice Allais, Walter Eucken, Ludwig von Mises, Milton Friedman, Karl Popper) para fundar a MPS, os congregados eram apenas 38, em sua maior parte europeus. No fim dos anos 1990, eles tinham se tornado mais de mil, espalhados por todo o mundo, embora a maioria continuasse vindo da Europa.
Radicados em grande parte na academia, esse coletivo intelectual não redigiu ambiciosos manifestos programáticos (as "intenções" formuladas em 1947, no momento da fundação, são uma pequena página bastante banal, que também se pode ler de modo idêntico no site da MPS), nem grande projetos de reformas institucionais. Em vez disso, produziu milhares de ensaios e livros, muitos de nível notável, que giram todos em torno de temas que, para os sócios da MPS, eram e são a essência do neoliberalismo: a liberalização dos movimentos de capital; a superioridade fora de questão do livre mercado; a categórica redução do papel do Estado como construtor e guardião das condições que permitam a máxima difusão de um e de outro.
Graças a esse trabalho imenso e capilar, por volta de 1980, as doutrinas econômicas e políticas neoliberais tinham ocupado todos os espaços essenciais nas universidades e nos governos. Obviamente, não foi apenas a MPS que se consumiu para tal fim, mas o seu papel foi enorme. Não exagerava um historiador do pensamento neoliberal (Dieter Plehwe) quando definiu a MPS, anos atrás, como "um dos mais poderosos órgãos de conhecimento da nossa época".
No entanto, os sócios não se limitaram a publicar artigos e livros. Muitos deles chegaram a ocupar posições centrais no aparato de governo dos maiores países. Nos tempos da presidência Reagan (1981-1988), de cerca de 80 conselheiros econômicos do presidente, mais de um quarto eram da MPS.
As liberalizações financeiras decididas pelo governo Thatcher na primeira metade dos anos 1980, que mudaram o rosto da economia britânica, foram elaboradas, em grande parte, peloInstitute of Economic Affairs, uma filiação da MPS fundada e dirigida por dois sócios,Antony Fisher e Ralph Harris.
A cúpula da indústria francesa e alemã sempre foram numerosos nas fileiras da MPS, entretendo estreitas relações com os sócios provenientes do mundo político.
De destaque foi a participação italiana na MPS. Entre os seus primeiros sócios, estava Luigi Einaudi. Dois italianos foram presidentes: Bruno Leoni (1967-1968) e Antonio Martino(1988-1990), que ainda figura entre os sócios, ao lado de (salvo engano) Domenico da Empoli, Alberto Mingardi, Angelo Maria Petroni, Sergio Ricossa.
Duas características marcam fortemente a hegemonia da MPS sobre a cultura e a práxis econômico-política dos Estados europeus a partir dos anos 1980. A primeira é a desmesura da vitória sobre qualquer outra corrente de pensamento – especialmente na economia. O keynesianismo, desde as origens o arqui-inimigo da MPS, foi reduzido à insignificância e, com ele, o pensamento de Schumpeter, de Graziani, de Minsky. Sobrevivem aqui e ali, em algum departamento universitário, mas na política econômica da União Europeia contam como zero.
À força de liberalizações inspiradas pela cultura da MPS, o sistema financeiro domina a política não menos do que a economia – como demonstrou mais uma vez o caso grego. Os sistemas públicos de proteção social estão em curso de avançada demolição: não servem, ao contrário, são nocivos, pois cada indivíduo, segundo a cultura neoliberal, é responsável pelo seu destino.
A escola e a universidade foram reformadas, começando pela Alemanha para acabar pelaItália, de modo a funcionar como empresas. Wilhelm von Humboldt deve estar se revirando no túmulo.
A segunda característica da cultura econômica neoliberal de formato MPS é a sua incrível resistência às pesadas refutações que a realidade lhe inflige há ao menos 15 anos. O início dos anos 2000 viu o colapso das empresas dot.com, glorificadas pelos economistas neoliberais, que, em nove de cada dez casos, eram estratagemas nos quais as Bolsas, em nome da hipótese de que os mercados sempre são eficientes, apostavam bilhões de dólares.
O fim dos anos 2000, ao contrário, testemunharam ao quase colapso da economia mundial, minada pelas finanças baseadas deliberadamente em milhões de empréstimos hipotecários que as famílias não tinham meios para pagar.
Depois de 2010, os economistas neoliberais e os políticos por eles doutrinados impuseram às populações da União Europeia as políticas de austeridade, que se revelaram um fracasso total na opinião dos seus próprios promotores. Em síntese, os economistas formatoMPS predispuseram os dispositivos que produziram a grande crise; não a viram chegar; não souberam explicá-la e propuseram remédios que pioraram a situação. Apesar de tudo isso, continuam ocupando a sala de comando das políticas econômicas da União Europeia.
Se alguém pudesse perguntar a Gramsci como é que as esquerdas europeias, independentemente de como se denominem, começando pela italiana, foram abaladas sem opôr resistência pela ofensiva hegemônico do neoliberalismo iniciada em 1947 a partir deMont Pélerin, talvez ele responderia "porque vocês não os souberam imitar".
Ao rio de publicações voltadas a afirmar a ideia dos mercados eficientes, vocês não souberam opor nada de semelhante, para demonstrar com argumentos sólidos que os modelos com os quais se queria demonstrar tal ideia se fundamentam em pressupostos totalmente inconsistentes.
Além disso, continuaria Gramsci, onde estão os seus artigos e livros que, dirigindo-se tanto aos especialistas, quanto aos políticos e ao grande público, cimentam-se para provar, a cada dia, com argumentos sólidos, a superioridade técnica, econômica, civil, moral da saúde pública sobre a privada; das pensões públicas sobre as privadas, diante dos ataques cotidianos às primeiras pela mídia e pelos políticos, baseados geralmente em dados incorretos; do Estado sobre as empresas privadas para produzir inovação e desenvolvimento, hoje, assim como em toda a segunda metade do século XX; da importância econômica e política dos bens comuns sobre o absurdo das privatizações?
Como a natureza tem horror ao vácuo, o vazio cultural, político, moral das esquerdas foi pouco a pouco preenchido pelas sucessivas levas de leitores, eleitores, professores, funcionários de partido e das instituições europeias, instruídas pelo coletivo intelectual que surgiu da MPS.

É preciso construir o consenso, e a MPS demonstrou saber fazer isso. As esquerdas nem sequer tentaram.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Efeito estufa, controvérsias e caminhos

 
 
Dar preço ao carbono é um debate mundial crescente entre os pesquisadores envolvidos com a mudança climática. O ponto é como fazer isso de forma a reduzir a emissão de gases-estufa e financiar a adaptação aos impactos da mudança climática. O exemplo de como alguns países vêm se adiantando a isso é um dos pontos altos do livro "O Imbróglio do Clima" organizado pelo economista José Eli da Veiga, que será lançado no dia 26/11, em São Paulo, na livraria Fnac de Pinheiros, a partir das 16 horas.
 
O comentário é de Daniela Chiaretti, publicado pelo jornal Valor, 25-11-2014.
 
É conhecida a visão cética de Veiga ao processo internacional da ONU na costura de um  acordo climático global. Em seu capítulo no livro, o colunista do Valor diz com todas as tintas que a convenção sobre mudança do clima da ONU foi feita às pressas e que "parece ínfima a possibilidade de que se encontre efetiva solução para qualquer problema global em arenas de 193 Estados". Bombardeia o Princípio das Responsabilidades Comuns Mas Diferenciadas (CBDR, na sigla em inglês), um dos pilares da convenção. Esse princípio reconhece que, se todos têm responsabilidade em relação à crise climática, a quota dos Estados Unidos é diferente da de Burundi. É verdade que há muitos matizes nessa comparação (um país em desenvolvimento como o Brasil não pode ter a mesma responsabilidade que outro como o Haiti, por exemplo) e ajustes dessa gradação estão sendo pensados - inclusive pelo Brasil.
 
O livro reúne quatro autores e dá um panorama atual da ciência do clima e suas controvérsias, além da discussão econômica que envolve o debate climático. É um dos momentos em que Veiga discorre sobre as estratégias dos países pioneiros em dar preço ao carbono. Ele lembra que, entre 1993 e 1997, quando as negociações culminaram noProtocolo de Kyoto, a estratégia que venceu foi a do comércio dos direitos de emissão, conhecida por cap-and-trade (estabelecer um teto de emissões e comercializar as licenças para emitir). O exemplo mais expressivo desse mercado de créditos de carbono é o europeu, que envolve 11.500 empresas, responsáveis por 40% das emissões do bloco, mas que está em crise nos últimos anos, com o preço do carbono muito baixo. Esse caminho, segundo o economista, impediu que deslanchasse o "historicamente comprovado recurso à tributação" e acabou fazendo com que "meros 7% das emissões globais decarbono" estejam hoje dentro desses dois mecanismos de formação de preço.
 
Há taxas-carbono na Dinamarca, Finlândia, Irlanda, Suécia, Reino Unido, Noruega e Suíça. O Chile acaba de criar a sua. O exemplo da Columbia Britânica, no Canadá, merece destaque. É, diz o economista, o melhor dos impostos climáticos em vigor. A taxa na província canadense incide sobre a queima de todos os combustíveis fósseis, sem aumentar a carga tributária. Por uma tonelada de carbonoa empresa pode desembolsar US$ 20, mas, para evitar que os negócios sejam prejudicados, a alíquota do imposto de renda das pessoas jurídicas foi reduzida de 12% para 10%. O problema é que o exemplo tem que ser seguido por outras províncias canadenses e por estados dos EUA, para evitar perda de competitividade.
 
"A única maneira eficaz de se administrar a mudança climática é a adoção de uma taxa mundial, mas incidente sobre o consumo, de modo que o preço de qualquer mercadoria também reflita seu correspondente teor de carbono", resume Veiga.
 
O economista e pesquisador em economia do meio ambiente Petterson Molina Vale volta a esse tema em seu capítulo, uma análise atual da intersecção entre as questões climáticas e a economia. Retoma estudos de economistas como Robert Pindyck, do MIT, que "propõe a pergunta fundamental", diz Vale, sobre "qual dever ser o preço do carbono, e responde categoricamente que "ninguém sabe." Ele ilustra as dificuldades de se criar taxas-carbono com o exemplo da França, que desde 2009 discute o assunto, sempre com muita oposição à ideia. "O custo político da imposição de um preço sobre carbono é elevado, pois se trata de um tributo que incide sobre a base da cadeia produtiva (produção de energia) e com isso se propaga pelo sistema de preços".
 
Vale, que foi aluno de Veiga, também desconstrói qualquer esperança que se possa ter sobre "ações do tipo universalista, em que todos os países com emissões relevantes assumem compromissos de forma sincrônica e coordenada". Para ele, são "inviáveis tanto teoricamente quanto na prática". Ele acredita que, depois da fracassada conferência de Copenhague, em 2009, "o eixo da tomada de decisão passa a ser de países, regiões, cidades e empresas". É uma meia-verdade. É fato que países, regiões, cidades e empresas estão se mexendo bastante na questão climática na imensa lacuna da negociação internacional. Mas a maioria esmagadora das empresas fala muito e faz pouco e muitas políticas públicas locais acabam dando em nada - basta jogar uma lupa em várias políticas climáticas estaduais e municipais brasileiras.
 
O acordo climático é complexo porque tem que fechar, ao mesmo tempo, cortes de emissão, fundos de adaptação, fundos climáticos, proteção das florestas e ver como, afinal, governos decidirão sobre transferência de tecnologia se esta é uma esfera de domínio privado - todos, fronts de ação nascidos nos fóruns climáticos internacionais. Mas parece bastante razoável a afirmação de Vale de que "a ação climática se baseará cada vez mais no princípio do aprendizado pelo percurso, passando-se a priorizar a ação local à negociação internacional."
 
Vale surpreende ao indicar ao leitor um expediente pouco comum nos textos dos estudiosos do clima. Diz que quem não estiver interessado em "complexidades técnicas" pode pular alguns itens. É um artifício simpático, que, no entanto, não funciona no primeiro texto do livro, o que trata da ciência do clima e é escrito pela professora Sonia Maria Barros de Oliveira, do Instituto de Geociências da USP. A ela coube a tarefa de atualizar os achados que estão no último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, na sigla em inglês), o braço científico da ONU. Em linguagem bastante acessível, transcorre sobre as mudanças nas temperaturas da superfície e nos oceanos, nas geleiras e nos gelos marinhos, na concentração de CO2 e metano na atmosfera e até no que se conhece dos últimos 800 mil anos. É um mergulho no que existe de mais atual na ciência do clima.
 
O que dizer do capítulo escrito pelo físico Luiz Carlos Baldicero Molion? Desperta muito interesse o "Alarme falso: o mundo não está em ebulição!", escrito pelo mais famoso pesquisador brasileiro da corrente que nega que o clima esteja mudando em função das atividades humanas. Mas o debate democrático sobre o tema, proposto por Veiga, pode ser frustrado se o leitor desconhecer o que venha a ser o albedo planetário ou não faz ideia do que quer dizer "a desativação colisional". O recado de Molion é claro, no entanto: "Ninguém, no mundo, mesmo nos países avançados, consegue prever o clima com três meses de antecedência, que se dirá com antecipação de cem anos!". Se ele estiver certo e a esmagadora maioria dos cientistas no Brasil e no mundo, errada, então é melhor seguir a recomendação dos crentes e entregar a Deus toda esta história de mudança do clima.
 
"O Imbróglio do Clima"
José Eli da Veiga (org.). Editora: Senac SP. 164 págs., R$ 54,9

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A obsessão pelo crescimento econômico como patologia social

do blog do Marcio Valley
Tim Jackson, em seu livro "Prosperidade sem crescimento: Vida boa em um planeta finito", surpreende os leitores ao apontar estudos que desvinculam o sentido de prosperidade individual à posse de riqueza. Questionadas, as pessoas tendem a identificar o desejo de prosperidade, precipuamente, ao bom relacionamento com familiares e amigos, à segurança de si e das pessoas a quem quer bem, à possibilidade de realizar coisas pelas quais se sinta gratificado, à manutenção de um emprego decente com renda meramente suficiente para a manutenção de uma vida digna e ao sentimento de pertencimento a uma comunidade da qual possa participar de forma ativa. Jackson denomina de florescimento a possibilidade do indivíduo alcançar esse conjunto de fatores. A prosperidade, assim, está plenamente vinculada à capacidade do indivíduo de florescer. Alcançar riqueza não é, em geral, incluída pelas pessoas como um dos requisitos do florescimento. Uma renda digna, não riqueza, é um elemento considerado, todavia apenas como um meio para o sucesso na meta do florescimento.
Essa espécie de prosperidade que advém do florescimento independe do crescimento econômico. De fato, é possível imaginar uma economia estável, com crescimento variando em função do número de habitantes do planeta e, sendo assim, tanto podendo crescer, como decrescer, na qual as pessoas consigam viver num ambiente de fraternidade, trabalhando com renda digna, realizando o que gosta de fazer e com segurança, ou seja, florescendo em sua condição de ser humano.
Dessa forma, conclui-se que o crescimento econômico que gera uma imensa desigualdade na distribuição da riqueza, mantendo bilhões de pessoas na mais absoluta miséria, e que não possibilita o florescimento individual, é de pouca serventia se considerado sob o prisma da produção de prosperidade.
A obsessão pelo crescimento do PIB, cuja relação com a prosperidade e a felicidade do ser humana é, para dizer o mínimo, improvável, pode, portanto, ser interpretada como uma doença que conduz o ser humano a desprezar as necessidades do sistema ecológico e a materialização do florescimento individual.
Por outro lado, o economista francês Thomas Piketty, no livro "O capital no século XXI", livro que o prêmio Nobel Paul Krugman não hesitou em denominar de "verdadeiramente soberbo", informa que a inflação não foi um acaso ou um infortúnio econômico, mas resultado de uma ação planejada, em fins do século XIX e início do XX, que extinguiu o padrão ouro das moedas fortes, o que foi feito para possibilitar a emissão de moeda sem lastro. O objetivo? Reduzir, através da inflação, a dívida pública das nações e pagar as despesas das guerras. Em outras palavras, inventou-se a inflação para dar o calote na população. Piketti relata que, até então, a economia crescia, com pouca variação, na proporção do crescimento populacional, às vezes um pouco mais, outras um pouco menos. A partir daí, a inflação tornou-se um problema que, até o momento, não possui solução. Além disso, ele descreve academicamente os motivos pelos quais a inflação, mesmo pequena, de 1% ao ano ou inferior, afeta de maneira perniciosa a economia de qualquer país. Quanto maior a inflação, mais rápidos são sentidos os efeitos daninhos.
Não bastassem todos os problemas acarretados pela invenção da inflação, que Piketti descreve em seu livro, há ainda um que talvez seja um de seus mais perversos efeitos: ela é um dos responsáveis pelo surgimento do consumismo desenfreado a partir de meados do século XX, porque, ao corroer o valor da renda, tanto a proveniente do trabalho, como a do capital, obriga a uma recomposição através do aumento real da economia. Quando o enfatizo como um efeito perverso da inflação, faço-o porque tornou-se o consumismo um fetiche social que antropomorfiza o objeto de consumo e coisifica o ser humano. Hoje em dia, raramente alguém é admirado por sua cultura se não materializa esse valor interno em objetos icônicos externos. "Essa pessoa não pode ser considerada culta e erudita se não mora num bairro chique e não dirige um carro caríssimo", é o que pensam ao excluírem de suas relações a pessoa que optou por uma vida frugal.
Há algo mais ridículo do que uma pessoa, em reunião social, puxar conversa jactando-se de possuir uma determinada marca de relógio ou de automóvel e, ainda por cima, perguntar pelas marcas que o interlocutor costuma adquirir? Como qualificar a auto-exibição de frivolidade de alguém que posta na rede social a fotografia do prato que pediu em determinado restaurante? Essa é a perversidade do consumismo: transforma o ser humano, até onde se sabe o único ser vivo possuidor de inteligência racional do universo, em um pateta superficial que desonra a cultura e é obsedado pela inanidade do exibicionismo.
Esse mesmo consumismo fútil e sem sentido é que, em Bauman, é considerado um dos fatos geradores da liquidez da modernidade, onde tudo é fugaz e difícil de conter por muito tempo, qualificando-se o indivíduo pelo que possui e não pelo valor intrínseco de si mesmo. E preocupa Jackson pela vacuidade do ataque feroz aos recursos naturais e pela expansão da ocupação humana em todos os habitats.
Não há dúvida de que o interesse demasiado pelo crescimento econômico decorre inicialmente do aumento populacional. Para gerar emprego e renda, a economia necessita acompanhar o ritmo da variação no número de pessoas que buscam o mercado de trabalho. Como o século XX gerou um incremento populacional até então inimaginável, essa explosão demográfica exigiu um crescimento da economia à altura. O incentivo ao consumismo nasce, em princípio, dessa urgência econômica. Assim, o primeiro elemento culpado pela necessidade do consumismo é a explosão demográfica.
Entretanto, a inflação, por desvalorizar a economia ainda que mantidas as mesmas condições, obriga à recuperação desse prejuízo no mínimo em idêntico percentual. Passa-se, dessa forma, a existir um segundo elemento que deve ser pelo menos igual ao crescimento econômico para que tudo se mantenha como está, que é a inflação. Muito simplificadamente, num ambiente de crescimento populacional anual de 2% e inflação igual a 2%, um crescimento econômico inferior a 4% será, em tese, um desastre.
O consumismo surge como salvador da economia. Para incrementá-lo, nasce uma publicidade engenhosa e um artifício demoníaco: a obsolescência programada, mecanismo através do qual as coisas são produzidas para durar um curto tempo, obrigando à sua reposição reiterada e ampliando o consumismo.
Remédio, contudo, que está matando o doente ao impôr o pesado ônus de uma agressão sem paralelos ao ambiente em que vivemos. O extrativismo é feroz, a necessidade de ocupação da terra aumenta a cada segundo. Muitas espécies já foram extintas, outras estão em perigo. Diversos ecossistemas são hoje mera lembrança.
Nesse ponto retornamos a Tim Jackson o problema que ele nos apresenta da impossibilidade de crescimento infinito de qualquer subsistema que integre um sistema finito. A finitude do sistema obviamente determina idêntica finitude de todos os subsistemas nele contidos. O sistema denominado planeta Terra é finito, donde decorre que o subsistema ecológico terráqueo é igualmente finito, assim como finitos são todos os subsistemas desse subsistema, inclusive o sub-subsistema econômico. Portanto, a obsessão pelo crescimento econômico infinito e pela riqueza individual infinita são, tanto uma impossibilidade física, como uma patologia social capaz de conduzir ao aniquilamento da civilização.
Por conta disso, Jackson nos coloca a seguinte questão: o crescimento contínuo da riqueza dos indivíduos que já são muito ricos é uma meta saudável a ser perseguida pela economia política num mundo cujos limites ecológicos já foram alcançados e estão perigosamente sendo ultrapassados?
Como ninguém, nem os ricos, desejam a destruição da civilização, é muito possível que, em médio prazo, se inicie um processo de ausência de crescimento ou mesmo de redução da economia. Se isso ocorrer, entra outra questão: como ficará a renda do trabalho? Segundo Piketti, em situações de ausência de crescimento econômico, a tendência de concentração da riqueza em poucas mãos se acentua. Além disso, a tecnologia e o aumento da produtividade torna cada vez mais desnecessária a mão-de-obra humana. De que forma será possível a criação de emprego num ambiente de economia estagnada, de trabalho desenvolvido por artefatos tecnológicos, com alta produtividade e com concentração de riqueza cada vez maior? É possível que o setor de serviços preencha esses espaços?
Para que o setor de serviços crie a maior quantidade possível de empregos, é imprescindível que se pense em redução drástica do número de horas e de dias trabalhados. O ócio criativo surge desse tempo vago e possibilita o florescimento, com cada um procurando fazer aquilo que o realize individualmente. A busca pela cultura, pela saúde, pelo aperfeiçoamento físico e esportivo, pelo lazer, pelo conhecimento de lugares, pelo aprendizado e produção de arte, enfim de toda atividade que sirva ao propósito de construção da individualidade, naturalmente faz surgir o outro lado da moeda: os prestadores de serviços que serão os auxiliares dessa busca. Professores, médicos, artistas, agentes de turismo, profissionais liberais de toda espécie, produzirão grande parte das atividades e da renda necessária, destacando-se que são atividades de baixa produtividade que, por isso, possibilita o surgimento de empregos em quantidade proporcional à demanda. Basicamente, um cabeleireiro do século XIX estava limitado fisicamente a cortar a mesma quantidade diária de cabelos que hoje em dia um cabeleireiro pode cortar.
Entretanto, o setor de serviços não dará conta de gerar a renda necessária para todos os habitantes do planeta. O que fazer? Duas coisas parecem inevitáveis: a redução da população mundial a patamares administráveis e a diminuição forçada da concentração da riqueza.
A redução da população não é difícil e pode ocorrer de forma bastante acentuada em duas ou três gerações, desde que obstáculos morais e religiosos sejam postos de lado. Numa hipótese drástica, e praticamente impossível, se cada mulher tiver apenas um filho, o número de nascimentos será igual à metade da população em uma geração e à metade disso em duas. Nessa hipótese, em pouco tempo, alcançando-se, talvez, uma população de dois bilhões de pessoas, seria possível adotar a taxa de reposição, que é de 2,1 filho por mulher. Em uma suposição menos radical, se cada uma tiver 1,5 filho, a população se manteria estável durante algumas décadas e depois passaria a decrescer.
A redução da concentração da riqueza é necessária para a produção de renda para uma parcela considerável da população que, ao menos no início do processo de reforma da economia política, não encontraria emprego para auferimento de renda. Caberia ao Estado alocar recursos para essas pessoas. Os métodos para alcançar essa finalidade são variados e vão desde a vedação da formação de grandes conglomerados econômicos, com pulverização da produção, até a cassação de parte considerável do direito de herança, passando pela tributação pesada das grandes fortunas. O controle rigoroso sobre os títulos negociados no mercado, com proibição daqueles não vinculados diretamente ao setor produtivo, é uma imposição.
Paralelamente, o retorno de uma ancoragem real para a moeda aparenta ser salutar.
O fato aparentemente indiscutível é que o capitalismo precisará se reinventar.
Pode ser que Marx estivesse certo quando sugeriu que a superação do capitalismo surgiria de suas próprias crises e contradições intrínsecas. Se essa superação resultará em comunismo ou outra coisa, teremos que aguardar para ver.

sábado, 8 de novembro de 2014

Nova biografia de Freud, escrita pela historiadora Elisabeth Roudinesco

 
A vida e a obra de Sigmund Freud (1856-1939), o criador da psicanálise, foram objetos de uma enormidade de estudos. Mais uma biografia, hoje, do célebre autor de “Interpretação dos sonhos” e “Totem e tabu”? Para a historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco, a escrita de seu “Sigmund Freud — dans son temps et dans le nôtre”(Sigmund Freud — em seu tempo e no nosso) foi uma “imposição”.
A reportagem é de Fernando Eichenberg, publicada pelo jornal O Globo, 27-09-2014.
Com acesso aos novos arquivos abertos pela Biblioteca do Congresso de Washington, nos Estados Unidos, a autora francesa mergulhou na vida e obra do biografado com a intenção de mostrar que Freud é um produto de seu tempo e, ao mesmo tempo, revelar verdades sobre as “lendas negras e douradas” edificadas sobre o personagem. O livro foi lançado este mês na França, pela editora Seuil, e tem publicação prevista no Brasil para 2015, pela Zahar.
Crítica severa de uma psicanálise a-histórica, Roudinesco condena a percepção da obra deFreud isolada do contexto de sua época, estudada como um corpus clínico à parte do mundo em que foi elaborada. Somado a isso os repetidos ataques protagonizados nos últimos 30 anos pelos “antifreudianos radicais”, hoje não se sabe mais quem é Freud, sustenta a autora em entrevista ao Globo em sua casa, em Paris.
Desde a primeira biografia de Freud, de autoria de Fritz Wittels, em 1924, passando pelos três volumes de “Vida e obra de Sigmund Freud”, de Ernest Jones, publicados entre 1953 e 1957 (lançados no Brasil pela Zahar), uma miríade de teses e ensaios foi produzida nos mais variados idiomas, entre os quais o título de referência “Freud: uma vida para o nosso tempo”, de Peter Gay, de 1988 (Companhia das Letras). O minucioso trabalho de 592 páginas de Roudinesco é reivindicado como a primeira biografia francesa do personagem, com uma nova abordagem e distanciamento de um Freud definido como um“conservador rebelde” e criador de uma “revolução simbólica” em um movimento que se perpetua.
Elisabeth Roudinesco será a principal convidada da “IX Jornada Bianual do Contemporâneo”, promovida pelo Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade, nos próximos dias 3 e 4, em Porto Alegre. No dia 6, estará no Rio para falar sobre “A psicanálise na situação contemporânea”, às 9h, no Instituto de Psicologia da Uerj. OBrasil, para ela, é hoje o “país mais freudiano do mundo”.
Eis a entrevista.
Por que Freud e este livro hoje?
A necessidade se fazia sentir ao longo de um certo tempo de renovar a abordagem deFreud. Sou o primeiro autor francês a fazê-lo, e o último de um longa série. E o primeiro a ir aos arquivos e utilizá-los de uma outra forma. É verdade também que o fim de um ciclo de ondas sucessivas de ódio a Freud, de lendas negativas, de livros negros, já faz 25 anos. Se foi muito longe no antifreudianismo, e se chegou a um ponto em que a opinião pública já estava farta de que se tratasse Freud de nazista, de incestuoso, de canalha. Era preciso restabelecer um pouco de verdade. Eu me dediquei a isto. Os psicanalistas nadam no anacronismo, na interpretação abusiva, porque para eles o contexto histórico não existe. Quis mostrar bem que Freud nasceu num mundo no qual não havia eletricidade, em que a promiscuidade de membros de uma mesma não era a mesma de hoje. Quando ele conta sua vida cotidiana, seja na “Interpretação dos sonhos” ou em outros escritos, é um dia a dia diferente de hoje. Freud foi criado numa família grande, com muitos empregados, sem água corrente. Ele vive nesta promiscuidade em que pode realmente elaborar a teoria dos substitutos. Quando ele vê suas cinco irmãs, vê sua mãe ou seu pai. Há modelos familiares que estão acabando no momento em que teoriza isto. Tive sempre a preocupação de o imergi-lo em seu contexto histórico, e de mostrar que ele e sua obra são um produto de seu tempo.
Na França, o país mais freudiano do mundo, segundo a senhora, há uma rejeição analítica da complexidade da história de Freud. Por quê?
Mais se é freudiano, menos se é histórico. Mas isto está acabando. A França foi o país da renovação da doutrina e não o da herança histórica. Gerações de psicanalistas se interessaram nos textos freudianos de forma estrutural: o corpus sem sua história. Não é um acaso se não houve biografia de Freud na França. Jones, qual seja a crítica que lhe possa ser feita, tem a preocupação da história. O mundo anglófono foi muito mais atento do que o francófono à questão de imergir Freud na história, mesmo se ainda restam como interpretações psicanalíticas. A psicanálise sendo cada vez menos forte na renovação teórica, a preocupação foi de historizar. E nos Estados Unidos, as querelas entre historiadores são muito mais importantes do que as disputas entre psicanalistas. Não é o caso na França. E também não é o caso no Brasil e na Argentina.
O argentino Emilio Rodrigué (1923-2008), primeiro biógrafo latino-americano de Freud, teve, na sua opinião, a “audácia de inventar um personagem mais próximo de um personagem de Gabriel García Márquez do que de um sábio originado da Velha Europa”. A senhora diz que cada país criou seu próprio Freud. Quem é o Freud brasileiro?
Brasil tem esta vantagem de ser aberto a tudo. Os brasileiros são muito abertos à história da psicanálise e a todas as doutrinas, há um sincretismo. É o que foi chamado de antropofagia, este movimento que digere o que vem da Europa fazendo algo novo. Daí esta vivacidade.
Embora a França seja mais forte no plano doutrinal, hoje provavelmente o país mais freudiano do mundo seja o Brasil. Porque no Brasil o ensino da psicanálise se mantém nas universidades de Psicologia, mais do que na Argentina. Mesmo que a implantação da psicanálise tenha sido feita pelos argentinos, que tiveram o golpe de gênio de implantar okleinismo, o freudismo e o lacanismo. Mas a tradição universitária brasileira é muito forte. E o fato de que seja dividida em cidades é muito importante. Não é a mesma coisa no Rio, em Porto Alegre... E eles digeriram tudo que veio da Europa de forma antropofágica. Temos uma abertura maior no Brasil a tudo. O defeito, evidentemente, é que não há escola histórica, mas há uma tradição.
Houve Fernand BraudelClaude Lévi-Strauss, há uma abertura. Os brasileiros são ecléticos, e abertos a novas abordagens, enquanto na França os psicanalistas têm 25 anos de atraso em relação a sua história, infelizmente. E o dogmatismo lacaniano e psicanálitico em geral teve um papel nisso. Mas vamos chegar lá. Já o Freud brasileiro é eclético, é uma mistura de kleinismo, de lacanismo, de invenção brasileira. E neste ponto, Emilio Rodriguécolocou seu tempero. Ele faz variações em seu livro, é um romance latino-americano, se autoriza interpretações extravagantes, ,mas gosto disso, porque ao mesmo tempo há a seriedade do aparelho crítico.
A senhora muitas vezes respondeu a consecutivas iniciativas dos chamados“antifreudianos radicais”, como a tentativa de interdição de uma exposição sobre Freudem 1996, processos na justiça por difamação ou obras como “Mentiras freudianas”, deJacques Bénesteau; “O livro negro da psicanálise — Viver, pensar e melhorar sem Freud”, organizado por Catheryne Meyer, ou “O crepúsculo de um ídolo, a fábula freudiana”, de Michel Onfray, com quem teve uma acirrada polêmica e que não tardou em atacar este seu último livro sobre Freud. O “antifreudianismo” ainda é forte?
Isto nunca acaba. Mas depois ter sido um movimento majoritário, se torna agora minoritário. Assim como os psicanalistas tiveram sua hora de glória majoritária, hoje são minoritários. Mas eles não vão desaparecer. Michel Onfray respondeu que não precisava ler este livro para saber o que havia nele. Quando se diz isso, é o fim de qualquer debate. Há anos ele recusa qualquer debate comigo, e nós nos conhecemos muito bem. Ele delirou, disse que eu o tratei de pedófilo. De qualquer forma, não é apenas em relação a Freud que ele diz qualquer coisa. Fez o mesmo sobre a BíbliaAlbert CamusSartreSade, e vai continuar. Mas num momento a verdade triunfa. Da mesma forma que caiu a Nova Filosofia, todas estas besteiras que há 30 anos nos envenenam. Foi uma corrente não universitária muito sedutora em seu início, jovem, com personalidades brilhantes. Mas que tinham como maior defeito contar qualquer coisa, como dizer que o goulag já existia em Marx e Engels. Isto é uma contraverdade histórica. E de um certo modo a França está pagando hoje por isto. Hoje, estamos na vingança dos historiadores e dos filósofos universitários contra os filósofos midiáticos não universitários. Estamos no fim da Nova Filosofia, do antifreudianismo radical. Vamos passar à herança real.
A senhora define Freud como um “conservador rebelde”. Por quê?
Sem dúvida é um conservador rebelde. Ele entrou em rebelião contra os modos de pensar majoritários de sua época. Ele é um liberal conservador, que induziu uma revolução do íntimo.
É contemporâneo do socialismo, do comunismo, do feminismo, de todos os movimentos de emancipação. Mas sua característica é que retorne sempre ao Antigo, algo muito típico também de Viena e da cultura alemã. Para fazer uma revolução do íntimo, vai buscar modelos míticos na tragédia grega e não na modernidade literária, a qual, aliás, ele não entende muito bem. Ele tem este aspecto politicamente conservador, vota liberal, trabalha com os sociais-democratas em Viena, não confunde jamais o comunismo e o nazismo, mas não acredita que uma revolução social do tipo marxista vai dar certo. Ele é contemporâneo da Revolução Russa.
Não é a favor das convulsões republicanas francesas. Mas seu movimento psicanalítico é aberto, com discípulos de todas as tendências, progressistas, conservadores. Ele era pela emancipação das mulheres, e contra a supressão das instituições. Há uma imagem muito justa de Freud: era favorável à morte do pai, ao regicídio, mas a favor de que se recolocasse um rei no trono. Isto é explicado em “Totem e Tabu”Freud é regicida na condição de que reinstaure a monarquia depois de ter sido abolida. Não é republicano no sentido francês. Ele gosta muito de Paris, mas não é a favor de revoluções do tipo francês. O modelo para ele é Londres, o modelo econômico liberal inglês, e a cultura do Sul, a Itália e a Antiguidade romana.; e mais longe, a grega, e mais longe ainda, o EgitoFreud é um homem da bacia mediterrânica em seus sonhos, algo muito austríaco, entre o Norte e o Sul, e muito ligado ao modelo de monarquia constitucional. E ele é judeu, o que tem um papel considerável. Não é a favor do sionismo, à criação de um Estado judeu, prefere a diáspora, mas herdou algo desta rebelião. Para época de Freud, o inimigo é a religião. Ele é pela ciência. O que faz com que por vezes, em seu debate com o pastor Oskar Pfister (1873-1956), possa se enganar, confunde religião e fé. Mas para esta geração de homens sábios, originados do materialismo, o inimigo é o religioso. Ele tem isto em comum com Marx. Por isso é um conservador bastante singular. Ele é pela liberdade sexual, contra a pena de morte.
Um dos erros de Freud, segundo a senhora, é o de acreditar na construção de uma ciência.
Não é uma ciência, no sentido das ciências da Natureza. Ele sabia disto, por isso que abandonou o modelo fisiológico-neurológico. Mas não soube inscrever a psicanálise como uma disciplina integral na universidade. O que fez com que sempre tenha sido ensinada nos departamentos de PsicologiaAntropologiaSociologiaLiteratura e Filosofia. Teria podido fazê-lo? Não sei, talvez não. Talvez o destino da psicanálise seja o de não ser uma disciplina à parte. Mas hoje estamos novamente em um retrocesso, na ideia de que o corpo e o movimento são mais importantes do que a palavra. Mas isto não vai durar. Estamos numa encruzilhada, se foi muito longe na explicação estritamente química e orgânica do inconsciente. A psiquiatria biológica não existe mais como psiquiatria, ela é química. Há uma contestação. Quando se questiona a os resultados de Freud com seus pacientes, sua resposta é a de que a técnica psicanalítica trata as neuroses, não as psicoses. Durante trinta anos houve um reinado do “tudo químico”. Isto está acabando. Não por um retorno à psicanálise, mas como explicação demasiado totalitária, e pela rejeição dos pacientes.Freud elaborou uma clínica aplicada em seu início às neuroses. Mas eram neuroses graves. Ele mudou, a partir de 1914 percebeu a incurabilidade. Depois, o saber psicanalítico dominou toda a psiquiatria do século 20. Foi uma boa coisa. Antes do aparecimento dos psicotrópicos, era melhor ir em clínicas nas quais havia uma abordagem psicanalítica do que ser um simples sujeito de sanatório. A partir de 1945, os antigos asilos esvaziaram, foi um enorme progresso. E a ideia de combinar a cura pela palavra com medicamentos, para as psicoses, é uma bela definição. Sabemos que para um melhor tratamento da loucura são necessárias três abordagens, de meio ambiente, psíquica e medical. O problema é que mas nossas sociedades de hoje, com economias orçamentárias draconianas, não temos os meios de curar os loucos com os três meios. Então se passou ao “tudo químico”, que funciona mais rápido, mas que é catastrófico. A tripla abordagem se tornou impossível. Nas sociedades precarizadas como as nossas, os doentes mentais e os prisioneiros são muito mal tratados.
No livro, a senhora desconstrói “lendas” como as da autoanálise ou do complexo de Édipo freudianos.
Eu desfaço o complexo de ÉdipoFreud não escreveu uma só linha, exceto sobre o declínio do complexo de Édipo. Falou do complexo de Édipo por tudo, mas não teorizou. A psicologia edipiana não se sustenta. O complexo de Édipo como psicologia de família não funciona. O genial é fazer crer a cada neurótico que ele é Hamlet ou Édipo em vez de um doente mental. É muito melhor ser um herói de teatro do que um simples doente mental em um sanatório. E ele não foi capaz de escrever sobre a metapsicologia. A autoanálise não existe, é uma lenda forte e inventada. O próprio Freud disse que era a “sua autoanálise”, mas não é uma autoanálise, e sim uma passagem pelo erro para se alcançar a verdade. A correspondência com Wilhelm Fliess (1858-1928) não é uma autoanálise, mas uma errância de sábios. Ele errou no irracional para conseguir elaborar uma doutrina que sai da fisiologia. A “pulsão de morte”, um dos momentos fortes de Freud, não começa em 1919, mas em 1914, quando ele se pergunta, para introduzir o narcisismo, por que nos autodestruímos. Penso também que Freud tinha a convicção de que o que acontecia na realidade social já estava no psiquismo. Isto é apaixonante. E tinha a convicção de que o que ele mesmo dizia era revelador do inconsciente, e apenas traduzia, e que a realidade se passava como no inconsciente. Isto não é verdade, mas quanta audácia!
A senhora aponta como uma das grandes forças de Freud a criação de mitos.
Outra audácia sua foi a de fundar uma ciência fundada nos mitos, na racionalidade do estudo dos mitos. Cada livro de Freud provocou debates no mundo inteiro. Quando ele publica“Totem e tabu”, que vai na contracorrente da antropologia moderna, o mundo acadêmico discute este ensaio completamente fora de moda. Isto significa que ele contribui com algo. Quando escreve seus três ensaios sobre a teoria sexual, em vez de fazer um tratado se sexologia, o caso de todos seus contemporâneos, ele se ocupa da teoria sexual das crianças. Para mostrar que o que se considerava como perversões não o era, e que somos todos perversos.
O que é a “revolução simbólica” de Freud?
A lenda é a de que Freud inventou tudo, de que não deve nada a sua época. Não é verdade. Ele inventa algo da ordem que defini como revolução simbólica, remodelando as representações de sua época. Nisso ele é inovador. Quando se lê os psicólogos contemporâneos de Freud, que são válidos, sua superioridade intelectual, literária e imaginativa é evidente. A fraqueza de Freud foi a de não poder introduzir esta disciplina na universidade. E sua força foi a de ter feito um movimento. Ele não cria uma seita, mas um movimento político, revolucionário, platonista. Ele e seus discípulos têm consciência desde o início de serem portadores de uma revolução simbólica. A prova é a de que possuem a preocupação da memória e da história, contrariamente aos psicanalistas. Tinham o pressentimento de que seu mundo iria desaparecer, o que vai ocorrer primeiro com aPrimeira Guerra Mundial, e uma segunda vez, com o nazismo. Aprecio nos primeiros freudianos - que se disputam todo o tempo e que admiram mas não idolatram Freud – este sentimento de que seu mundo vai perecer. Daí vem a imigração, e o fato de que se deve levar a todos os países do mundo a lembrança de Viena. O exílio de Freud, sua casa, suas coleções, é a ideia de que já que tudo vai morrer com o nazismo, é preciso transportar a memória do movimento. Arquivos, fotografias, tudo é transportado para Washington ouLondres. É um gesto incrível. Freud não crer acreditar que o nazismo vai engolir Viena. Ele sabe, mas não quer aceitar. Ele espera por Hitler, e face a essa pulsão de morte, personalizada em Hitler, recua até o momento em que é preciso partir.
Entre as ditas “lendas fabricadas”, como senhora diz, estão suposições de Freud teria sofrido abuso sexual na sua infãncia, vivido uma relação com sua cunhada, abusado ele mesmo de sua sobrinha-neta ou em seu exílio em Londres abandonado suas irmãs, depois deportadas e exterminadas pelos nazistas.
Eu não encontrei nada disso nos arquivos. O que não se sabe é como foi a vida sexual deFreud antes de seu casamento. Ele teve provavelmente a adolescência de um jovem deViena. Não gostava de prostíbulos, do adultério. As mulheres se casavam virgens. Não se sabe o que houve antes, mas se sabe o que veio depois. Ele tinha a necessidade de ter mulheres em seu entorno. Pratica a abstinência, não quer outro filho. Sua cunhada ocupa um lugar muito particular. É uma segunda esposa não sexuada, ele mesmo o diz. Mas é preciso ser completamente louco hoje para colar retrospectivamente o que é a sexualidade atual sobre o que era naquela época. Não há verdades ocultas, mas quis invalidar os falsos rumores. Houve pessoas que negaram a existência do câncer de Freud, o que é fascinante. Ele também não recomendou a Gestapo. Desminto tudo isso. Se construiu uma máquina de fantasias, sejam negras ou douradas, sobre o personagem.
A senhora coloca Freud no mesmo estatuto de Einstein, DarwinMarxSartreSimone de BeauvoirHannah Arendt ou Michel Foucault: pensadores rebeldes vítimas de rumores e injustiças.
Marx se tornou um explorador de mulheres, repugnante, responsável pelo goulag. Há teorias revisionistas sobre Einstein que dizem não ter sido ele o criador da teoria da relatividade, mas sua mulher. E teria sido um pai abominável porque tinha um filho psicótico. Tudo isto não se sustenta. Sobre Darwin também se inventou muita coisa. E sobre Simone de Beauvoirou Sartre, que foi coberto de injúrias. Foucault foi acusado de ser responsável pela transmissão da Aids, e Jacques Derrida, de nazista. Para mim tudo isto deve ser banido. São visões apocalípticas. Sobre Freud, se discutiu quem teria lhe dado a última injeção. Se pretendeu que se teria ocultado o seu uso de cocaína, o que não é verdade. Se acusouFreud de introduzir a cocaína no mundo moderno. E o Freud fascista, amigo de Mussolini? Isso nunca. Sim, ele fez uma dedicatória a Mussolini, mas é preciso contextualizar. Há frases que Freud não pronunciou e que lhe são atribuídas. Há textos interpretados de forma equivocada, sem o contexto. Há de tudo. Estranhamente, os antifreudianos radicais não criticaram o que é criticável em Freud.
Por exemplo?
Não notaram muito as errâncias de Freud. Passam seu tempo a valorizar teses aberrantes para melhor criticar Freud. Os antifreudianos radicais pensam que Williem Fliess tinha razão contra Freud. Não sou por Wilhem Reich (1897-1957) contra Freud, por Otto Gross (1877-1920) contra Freud. Não é isto que se deve fazer, mas mostrar como o próprio Freud adota teorias extravagantes. É normal que Fliess seja hoje esquecido, ele tinha um sistema de pensamento irracional, mas fascinante. Pode-se ter muita simpatia por Reich, como eu tenho,, mas a teoria do orgônio é delirante. Os antifreudianos radicais passam todo o tempo a procurar antiheróis, não usam as verdadeiras críticas que poderiam ser feitas a Freud.
A senhora vê hoje uma crise do pensamento filosófico e da psicanálise hoje na França?
Estamos numa crise de herança na França, passageira, mas numa crise europeia, mundial do pensamento. Há hoje na França uma renovação evidente da filosofia, há uma geração de 40 anos que vai ser conhecida. Há uma renovação da antropologia, da sociologia. Menos para a psicanálise, porque eles estão acantonados na clínica. Daí a importância de um retorno de um Freud histórico. Penso que saímos de um período difícil do ódio a Freud, e hoje é preciso lê-lo de outra forma, como uma necessidade para os psicanalistas. Há trinta anos, os não psicanalistas leem melhor Freud do que os psicanalistas. O que não quer dizer que sejam maus clínicos. Eles não situam Freud na cultura do tempo de Freud, e assim não sabem situá-lo em nosso tempo. “Em seu tempo e no nosso” quer dizer: Freud que se constrói em seu tempo e que nos ilumina no nosso.